julho 04, 2005

Nós

Na última feira do livro, na Antígona, comprei um livro pela contracapa ("A obra que inspirou 1984"). Chama-se "NÓS" e foi escrito pelo russo Evgueni Zamiatine em 1920. É uma das primeiras distopias escritas no século XX. Distopia é uma palavra cara para "utopia que deu para o torto" (como se alguma utopia o pudesse evitar) e precede as obras mais conhecidas de Orwell, Huxley e Bradbury. Como nestas, a sociedade descrita defende-se numa argumentação quase impossível de refutar dentro do quadro mental a que recusa os cidadãos de sair. Em "NÓS" é a distinção entre liberdade e felicidade, identificando a primeira com o peso das opções, a responsabilidade do erro, o possivel do crime; enquanto a felicidade é o produto gelado da racionalidade cega a uma Verdade. Deixo-vos com um excerto/aperitivo:

"Nós seguimos em frente, como um só corpo com milhões de cabeças, e dentro de cada um de nós reinava a suave alegria que constitui, provavelmente, a vida das moléculas, dos átomos, dos fagócitos. No mundo antigo, os cristãos compreendiam bem o que isso era: a modéstia é uma virtude, o orgulho é um vício; compreendiam também que Nós vem de Deus, ao passo que Eu vem do Diabo.

Lá ia eu, caminhando ao passo como todos, mas, apesar de tudo, isolado deles. Tremia ainda no seguimento das perturbações recentes, tal como treme a ponte sobre a qual passou um comboio daqueles de antigamente. Tinha consciência de mim mesmo. Ora o conhecimento de si, o reconhecimento da própria individualidade só o têm o olho onde acaba de cair um cisco, o dedo esfolado, o dente dorido. Quando sãos, o olho, o dedo, o dedo não têm existência alguma. Não prova isto claramente que a consciência de si é de facto uma doença?"

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