fevereiro 16, 2007

Delegação

Se considerarmos que a violência é uma limitação imposta (i.e., não de comum acordo) às liberdades do outro, é a violência sempre reprovável? Conceder o direito à violência é algo que parece uma contradição. Como conceder um direito que é, na sua essência, uma violação de direitos? Nem sequer existe o direito à auto-defesa, o que há é uma argumentação (a protecção da própria integridade) que justifica, eventualmente, o uso dessa violência. A ser um direito, cada individuo procuraria exercer essa violência no seu próprio interesse, e nessa parcialidade resultaria a acção do mais forte, a arbitrariedade de quem a pode executar em maior grau. Este raciocínio justifica que o «contrato social» entregue o monopólio da violência ao Estado. É o Estado que, legalmente, age sobre cada individuo, é ele que define regulamentos de coerção defendidos por instituições que se pretendem imparciais (de onde se depreende a importância da independência no julgamento e na acção), distantes de emotividades subjectivas (espelhados em regulamentos de conduta e ética normalmente mais rígidos que as leis comuns) e o menos arbitrárias possível (onde a preferência da rigidez contra a inovação protege-as de jurisprudências contraditórias). Entre estas instituições encontramos o Exército, as Polícias, a Justiça. A forma encontrada pela nossa sociedade para domesticar esse potencial de violência passou, assim, por entidades abstractas, colectivas, que exercem a violência justificando-se em argumentações lógicas ou factuais e suportadas em leis previamente conhecidas. É nestas condições, no geral, que consideramos aceitável o uso da violência e é deste modo que é exercida, em maior ou menor grau mas por consenso, sobre todos nós.

Nada disto, em princípio, exige democracia. Desde que as instituições sejam de facto independentes, imparciais e não arbitrárias, uma sociedade pode controlar a sua violência potencial e, assim, ser estável. Mas, deixadas sem controle, sem uma fiscalização e vigilância externas, sem a possibilidade de substituição cíclica, o abstracto destas instituições torna-se numa rede de interesses pessoais que, após se cristalizar, tende a perder as características que a justificam e, também, tende a extender o conceito de violência para abarcar, no seu monopólio, outras situações não justificáveis (como o proliferar de crimes sem vítimas, o erodir da liberdade de expressão, o impor de uma única matriz de crenças aceitável). Também isto pode ocorrer em democracia mas torna-se impossível uma cristalização permanente (excepto, talvez, nesta instância de Justiça).

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